Papa Francisco tem enfatizado a importância da cultura do encontro, sintonizada com a alteridade, isto é, no olhar o outro como outro (ou semelhante), não como um estranho.
Um simples desentendimento no trânsito, por exemplo, pode tornar-se estopim para uma tragédia... Um pequeno esbarrão num aglomerado humano pode ser fator para o início de um grave desentendimento... O que está acontecendo à nossa volta?
Esse comportamento agressivo e intolerante – tão comum em níveis local, regional e internacional – estaria evidenciando que a concepção antropológica da filosofia hobbesiana, segundo a qual “O homem é o lobo do homem”, é verdadeira?
Hobbes (1588-1679) – filósofo empirista moderno – defendia que o Estado teve origem num contrato social estabelecido entre os cidadãos para preservar as condições necessárias à sobrevivência, pois, no estado de natureza, prevaleceria “a guerra de todos contra todos”.
Como cristãos católicos, estamos diante de uma realidade desafiadora, na qual precisamos apresentar e vivenciar uma visão de mundo e de ser humano que indique caminhos para superar a “guerra de todos contra todos”.
Nesse sentido, o Papa Francisco tem enfatizado a importância da cultura do encontro, sintonizada com a alteridade, isto é, no olhar o outro como outro (ou semelhante), não como um estranho.
Em relação à alteridade, o professor Mario Sergio Cortella faz uma observação interessante no livro “Nos labirintos da moral”: em latim, há uma palavra para designar o “eu” (ego) e duas palavras para expressar o “não-eu” (alter e alius). Alter carrega o sentido do outro como alguém que não representa uma ameaça ou perigo, com o qual desejo me relacionar. Vejo esse outro como um semelhante (a parábola do bom samaritano expressa muito bem o sentido da alteridade). Alius, ao contrário, é o diferente de mim, aquele que representa o perigo.
Essa distinção nos ajuda refletir sobre a onda de intolerância predominante no mundo contemporâneo. Há uma forte tendência de as pessoas enxergarem-se mutuamente como “estranhas”, “ameaças” e “perigos” nas relações cotidianas. Em outras palavras, predomina o ver o “não-eu” como “alius” e não como “alter”.
Esse ver a outra pessoa como “estranho ameaçador” vem sendo cultivado numa dinâmica denominada por Bauman – importante pesquisador social polonês contemporâneo – como mixofobia (medo de misturar-se, de conviver, de aproximar-se do outro). A mixofobia toma conta da vida contemporânea, cuja expressão visível atinge o seu ponto culminante na “arquitetura do medo”: os edifícios residenciais ou comerciais ganham aparência de fortalezas (muros, grades, circuitos de segurança). Nas ruas, somos monitorados 24 horas por dia, por sistemas de câmeras. Temos um verdadeiro big brother – ou o olho que tudo vê – controlando os movimentos cotidianos para garantir a sensação de segurança.
Nos espaços mixofóbicos, depo-sita-se toda a confiança nos sistemas de controle/segurança cada vez mais complexos ante um medo generalizado que cresce nos espaços urbanos. O outro passa a ser visto como uma constante ameaça, contra a qual precisamos nos proteger continuamente com as mais avançadas tecnologias.
Soma-se a isso a existência de pessoas consideradas “redundantes”, isto é, desnecessárias pelo simples fato de sua existência representar um estorvo para os demais. São os rejeitos da sociedade, que não consegue visualizar para esses indivíduos possibilidades de recuperação – ou reciclagem – pois são vistos como “lixo”, “dejetos”, “rejeitos” sociais, “produtos reprovados na linha de produção social”, para os quais resta única e exclusivamente a margem da sociedade... desde que seja bem distante das residências... Essa categoria conceitual “redundantes” pode ser perfeitamente representada em nosso cotidiano brasileiro pelos usuários de drogas, mendigos, população em situação de rua. Em nível mundial, vemos a tragédia dos refugiados tratados como redundantes (ou desnecessários – lixo a ser lançado em qualquer parte do mundo, desde que não seja no jardim da “nossa casa”).
Diante dessa realidade, Bauman nos coloca a necessidade da mixofilia – e aqui o pequeno utensílio doméstico “mixer” nos ajuda a compreender essa categoria conceitual, ao ser juntado à palavra grega “filia”, que significa “amizade” – isto é, a capacidade e o desejo de conviver com o outro, reconhecendo-o como semelhante. Pressupõe a capacidade humana de reconhecer o outro como outro, não como um “estranho ameaçador”, um alienígena ou forasteiro que poderá me atacar.
Com o seu olhar filosófico e sociológico, Bauman acentua a responsabilidade pessoal e social para o desenvolvimento de uma cultura pautada na mixofilia. Em meio à sociedade líquidomoderna (que mantém uma rotatividade muito grande de valores, a supervalorização do imediatismo, o hedonismo, os laços superficiais, o desperdício atrelado ao consumismo), precisamos fazer escolhas conscientes e comprometidas, não nos deixando envolver pela onda líquido-moderna que pode até mesmo propor um Cristianismo light, baseado numa teologia da prosperidade (prevalecendo a barganha financeira com Deus), ou numa Religião sem Igreja, sem solidariedade, apenas servindo para apaziguar consciências...
Por outro lado, Bauman acentua a relevância de políticas públicas voltadas para a valorização da mixofilia, como a criação de espaços públicos aconchegantes, acolhedores, promotores do encontro entre os diferentes – talvez alguns leitores poderão recordar-se do tempo em que podíamos caminhar tranquilamente nas praças, principalmente naquelas construídas em frente à Igreja Matriz... Infelizmente, a disseminação das drogas tem provocado o crescimento de espaços urbanos muito mais mixofóbicos...
Com a esperança que brota do Mistério Pascal de Cristo, o Papa Francisco realça a importância da promoção e do desenvolvimento da cultura do encontro. Em seu entendimento, a escuta e a capacidade de aprendermos uns com os outros contribuem significativamente para superar os muros – reais ou imaginários – que nos dividem e impedem a vivência da solidariedade focada na alteridade. Precisamos harmonizar as diferenças com diálogos que nos permitam crescer na compreensão e no respeito, por meio de relações mútuas de dar e receber, ao estilo da Oração de São Francisco de Assis.
Caminhar na perspectiva da cultura do encontro (numa dinâmica da alteridade) leva, no entendimento do Papa Francisco, à atuação da Paróquia como presença da Igreja num determinado território, proporcionando ambiente favorável para a escuta da Palavra de Deus, o crescimento da vida cristã por meio da oração e das ações, o diálogo, o anúncio, a caridade generosa, a adoração e a celebração.
A Paróquia constitui-se, assim, como um espaço promotor da mixofilia, que poderá expandir sua luz para toda a sociedade, seguindo a lógica – e a ordem – de Jesus Cristo: “Vós sois o sal da terra... Vós sois a luz do mundo... Brilhe a vossa luz diante dos homens, para que, vendo as vossas boas obras, eles glorifiquem vosso Pai que está nos céus” (cf. Mateus 5, 13-16).
Vitor Nunes Rosa
Teólogo e professor de Filosofia,
Sociologia e Metodologia de Pesquisa
Científica da FAESA – Vitória-ES
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